quinta-feira, 27 de maio de 2010

Cadernos cor-ternura


Menina morena sai à rua. Traz o cabelo apanhado para que não lhe passe a saudade à liberdade. Seus longos formosos caracóis castanhos já há muito não esvoaçam na brisa, bem que vento não falte. Diz que melhor os educa assim: presos. Com tanta convicção o diz que sou tentado a concordar. No entanto – e posto que lhe conferem tal beleza que, inconfundível, é sua apenas – forço-me a dissuadi-la, sempre sem sucesso. Menina não o sabe, mas em segredo, eu faço o mesmo. Daquela forma curiosa como se pegam os hábitos e se partilham ligeiros tiques ou manias, também eu me vejo assim, de cabelos presos – nunca longos e formosos como os seus, claro está – e gostando todavia de presos os ter.

Hipócrita pois. Não o nego. E se somente nisso!... Mas menina morena não o sabe, razão por que não amua nem magoa, nem tão-pouco duvida. Menina morena é assim: inocente que nunca outra. Lembro o dia em que vestiu jardim primaveril, todo ele a fundo azul. Das finas alças de meia falange à saia de cintura cobrindo apenas o cinto das calças de ganga rasgadas e amarfanhadas, traje simples e curto, justo a todo o corpo e por todo um desbotar inúmero de margaridas, tulipas, dálias e amores-perfeitos. Honestamente, não sei se vistoso se parolo. Sua figura rematada pelo fatídico sapato de verniz azul – bem garrido, por sinal – de fivela prateada que, sem meia, lhe encorrilhava até a pele do pé despido. Quase que nem andar podia menina morena. Faltava-lhe só o tacão de palmo para juntar à loucura. Inocente menina morena. Seu armário, assim o julgo, estará repleto de pequenas preciosidades inimagináveis, soberbas na sua insanidade, belas por um todo que, sem ela, se constataria numa feia insignificância, motivo de chacota, matéria para fogueira. Seu armário, julgo, estará repleto de bonitas meninezas.

Menina morena sai à rua. Seu passo leve, levemente o chão beijando. Cada toque, cada doce toque em bicos de pés, como que amores pousados com carinho e afeição. Embeleza a calçada com fios de cetim que lhe caem dos ombros, que os vai espalhando distraidamente com carícias de nervoso miudinho. Eu, cá do fundo, mal escondo a ansiedade. Menina morena faz-me disto – e com a displicência de quem desfaz um nó –: sai menina morena à rua; e saio eu, por culpa sua.

É-me quase já vício sair assim parado, seguindo pássaros com o olhar, admirando o seu cantar, tentando delinear com o dedo o seu voar. Passo o tempo enquanto espero por menina que desça. O banco enferrujado já me conhece, me reconhece ao longe, e por mim se mantém vago. Eu, receando desapontá-lo, não ouso faltar, saciando a sede e alimentando o vício.

E que sem dor, sem dó qualquer, a espero paciente.

Foi coisa que aprendi a guardar, paciência. Que nem há tempo me exaltava ou enraivecia, menina morena me pacienta, apazigua. É calmante, a doçura e a beleza. Que como doce recheado me vejo saboreando a brisa outonal. Que bem me vou sonhando acordado, escrevendo de olhos cerrados o que a mente nega e o coração cega. Sempre esperando por menina que desça.

Doçuras várias de sabores inúmeros vai minha alma provando. Aqui um beijo, acolá ternura. Doces regionais de quem não tem forno ou fervura.

E eis então menina que sai. Fecha a porta com um baque, treme do frio, guarda as mãos nas algibeiras e segue. O vento acaricia-lhe a face. Carinhosamente, como quem afaga um bebé, lhe passa o cabelo para as costas, suavemente planando. Ela sente, e não esconde o prazer. O terno mimo como uma mão de amor, de amado. Que sente no vento o olhar cúmplice e o beijo grato. Fá-lo por mim, sussurra-me de longe. Seus lábios de ar são projecção dos meus, e menina sabe que cada carícia, cada toque soprado é meu, mesmo que pelo vento. Vejo-me forçado a recorrer a Éolo por fraqueza do sopro. A mim que me falta o ar, é difícil beijar ou falar, ou a seu lado caminhar. Limito-me a estar… amorosamente estando.

Menina não me conhece e não me vê. Não me fala nem me ouve. Menina não está em mim e não me sente. Não se lembra dos dias, das noites. Seus espaços e tempos não sabem de mim. E não, não são devaneios de narrador. Foi ela mesma quem mo disse.


Miguel Reis

domingo, 16 de maio de 2010

600 à meia-noite.


Quantas vezes te escrevi já, e quantas não me lembrei do teu cheiro.
Hoje que o trago comigo, sinto-te mais a falta.

Duas páginas em branco e uma vírgula só.

domingo, 2 de maio de 2010

Cogita Tute


Finjo falando falácias, fundamentais fraquezas de um farsante fariseu fechado sem fereza, sem fôlego. Faço-o forçado, não me fitem de fraude! Sou físico, não filantropo! O fingimento fascina-me, é essa minha falta. Farto-me da fútil fatalidade do fado. Minha franca mais feliz fantasia é o findar da tua fatuidade. Que mais farei por fluir que uma face florida? Folgo em ficar fiel à fortuna, feliz pelo fantástico. Findado o final, o fim.